Mas este teria sido perdido, e na época de Moisés já não havia senão uma vaga lembrança de sua existência. Para o mulçumano, o Corão é a restauração desse antigo livro (não na letra, mas no espírito), é o Islã, um retorno à religião primordial abraâmica. "Abraão não foi judeu nem cristão; foi, outrossim, monoteísta, muçulmano, e nunca se contou entre os idólatras", relata um versículo corânico da terceira sura.
Visões Diferentes
"Inspiramos-te, assim como inspiramos Noé e os profetas que o sucederam,; inspiramos Abraão, Ismael, Isaac, Jacó e as tribos, Jesus, Jó, Jonas, Aarão, Salomão. E concedemos os Salmos a Davi".
O quarto capítulo do Corão traz este versículo em que Deus fala diretamente a Muhammad. É uma das tantas passagens que legitimaram sua missão profética e instauraram a nova religião. Fica, porém, a pergunta: Se Deus é um só, como podem haver certas discrepâncias entre as narrativas contidas na Bíblia e as narrativas corânicas?
Historicamente, cada religão tomou uma feição própria, e tal feição nunca esteve a salvo das modificações introduzidas pelo homem. Sendo a última religião revelada, o Islã, embasado no Corão, serviu como uma correção de rumo para a humanidade. Já na juventude, em Meca, o profeta Muhammad acreditava que certas passagens bíblicas, em especial algumas do Antigo Testamento, haviam sido adulteradas ao longo dos tempos em prol de interesses escusos. Com a revelação do livro sagrado ao Profeta, Deus teria pretendido corrigir os erros contidos em outras escrituras.
As diferenças entre o Corão e outros escritos sagrados não nascem , contudo, apenas de erros. Um dos maiores desacordos entre o Islã e o Cristianismo, por exeplo, nasceu da negação muçulmana aparente de que Cristo seja uma encarnação divina na Terra. Trata-se de uma questão de interpretação. Este ponto chegou a escandalizar os cristãos.
"Jesus Cristo foi uma criatura também", afirmam os mulçumanos. "Cada profeta - e Cristo é um profeta, para o Islã - expressou qualidades específicas de Deus, o Ser infinito. A principal qualidade de Cristo foi a de ser imensamente puro. Ele foi um espelho perfeito da natureza divina".
Como adverte o estudioso suíço das religiões Frithjof Schuon, as abiguidades fazem parte da história das Escrituras, o que pode provocar discrepâncias de interpretações e disputas. "Existe uma desproporção incomensurável entre o espírito, de um lado, e os recursos limitados da linguagem humana, de outro", escreveu ele no livro Compreender o Islão. Os livros sagrados revelam como o Criador tentou inteirar o homem de sua infinitude tendo à mão algumas poucas palavras.
Deus, porém, é mais sábio e sabe aplainar as questões divergentes entre os crentes de várias confissões: "Concorrei na prática do bem, e dirimirei as vossas diferenças".
Mais do que nunca, deve-se ouvir estas palavras do Corão. É uma ironia que o Islã, hoje tão marcado pela pecha de intolerância, tenha um tesouro de sabedoria escondido nas páginas do seu livro sagrado. Santas palavras, como as de todas as Escrituras.
Vendo Também o Outro Lado: A Difícil Escolha de Abraão
Abraão estava com 85 anos e não tinha filhos. Sua esposa Sara, já sem esperanças de gerar uma criança, entregou ao marido a escrava egípcia Hagar, para que ela lhe desse um descendente. Assim, nasceu Ismael. Quando o menino atingiu a adolescência, Allah impôs um teste a Abraão: sacrificar o filho dileto.
"Ó filho meu, sonhei que te degolava; que opinas?", perguntou o velho homem. Respondeu-lhe Ismael: "Ó meu pai, faze o que te foi ordenado! Encontrar-me-ás, se Allah quiser, entre os perseverantes!"
Quando ambos aceitaram o desígnio divino e Abraão preparava seu filho para o sacrifício, o Senhor o chamou: "Ó Abraão, já realizaste a visão! Em verdade, assim recompensamos os benfeitores. Certamente que esta foi a verdadeira prova".
Depois de testar a sinceridade de Abraão, Allah anunciou que ele seria o patriarca de dois grandes povos. Um deles lhe seria próximo e descenderia de seu segundo filho, Isaac, a quem Sara, aos 90 anos, dera à luz. O outro povo descenderia de Ismael e lhe seria distante.
Mais tarde, Allah mandou Hagar partir com Ismael para o deserto da Arábia, rumo a uma localidade chamada Meca. ali, ela e o filho quase morreram de sede, até que milagrosamente viram nascer uma fonte de água chamada Zamzam. De´pois disse, Abraão visitou a ex-escrava e o filho muitas vezes.
Em Meca, construiu a Caaba, um templo consagrado a Allah que atraiu muitos peregrinos ao local.
[A história de Abraão, ou Seydina Ibrahim, em árabe, difere da narrativa bíblica. enquanto na Bíblia o oferecido em sacrifício é Isaac - filho dele com Sara - para o corão foi Ismael, o primogênito, quem quase perdeu a vida para a glória de Allah. O dramático episódio é narrado na sura 37. Abraão representa a perfeita submissão do crente frente a Deus.]
Continua...