(Hoje, a Bolívia ainda vive suas diferenças culturais entre os indígenas, uma miscigenação entre os primeiros incas e outras tribos que foram dispersas, e os descendentes europeus. No geral, há distância velada entre a população branca e urbana, e entre os indígenas e andinos.)
As atrocidades praticadas contra os indígenas - e presenciadas por Las Casas - somaram-se a uma leitura que ele fez do capítulo 34 do livro bíblico do Eclesiástico:
"Se o governador dá atenção à palavras mentirosas, virão a ser perversos todos os seus servos."
Livro dos Provérbios 29:13
Isso foi durante a festa do Pentecoste de 1514.
Desde então, Las Casas tornou-se um defensor apaixonado da causa indígena e seu fervor o aproximou cada vez mais dos dominicanos, a quem se uniu em 1522.
(A convivência entre os negros, indígenas e descendentes dos europeus ficaram mais ou menos pacífica... Ninguém fala muito sobre o assunto, igual ao Brasil, ninguém se acha negro ou caboclo, apenas "moreno"... A miscigenação deu origem a um povo alegre, inteligente e criativo, muito disso, pela herança intelectual da primeira universidade das Américas fundada em solo peruano.)
Sua cabeça fervilhava com projetos de um modelo alternativo de colonização em que índios e espanhóis trabalhariam juntos em igualdade, e também de evangelização, na qual a violência seria banida.
Nas décadas que se seguiram Las Casas lutou par colocar esse ideal em prática, até ganhando d favor do recém imperador Carlos V, que governava a Espanha, e o Sacro Império Romano-Germânico.
(O México é um dos países que você encontra mais traços indígenas em toda a população. Acima, um breve passeio no centro da Ciudad del México.)
Nomeado Bispo de Chiapas, no sul do México, ele renunciou à terra natal, convencido de que era preciso mobilizar o que hoje chamamos de "opinião pública".
Foi quando bateu de frente com Sepúlveda.
Debate Misterioso
O Conselho das Índias, diante do diz-que-diz sobre a publicação do livro de Sepúlveda, propôs ao rei que se realizasse um debate em 1549.
O problema é saber que jeito a discussão foi realizada, já que os autos não sobreviveram: não há certeza se os dois intelectuais se digladiaram pessoalmente ou se Las Casas apenas rebateu os argumentos escritos do cônego.
Em termos filosóficos, o fato é que Sepúlveda levava vantagem.
(E como os peruanos veem a si mesmos? Acima, novela peruana Dina Paucar, La Lucha por un Soeño, do canal público América Televisión, um enorme sucesso no país, de 2012.)
Grande especialista em Aristóteles, o filósofo grego cujas ideias dominaram o pensamento político da Igreja a partir do século 14, o cônego usava a tese aristotélica das diferenças naturais entre os homens para justificar a dominação.
Aristóteles partia do princípio de que, por natureza, alguns homens estão para mandar e outros - os brutos, rudes, rúticos, bárbaros - para obedecer. Sepúlveda montou toda a sua argumentação sobre a "prova" de que os índios eram assim mesmo!
E Las Casas baseou seus argumentos num conceito de índio que faria história: bom, delicado, inocente, tão inteligente quanto os fidalgos espanhóis.
(Hoje os bolivianos estão buscando entender sua própria herança cultural fazendo pequenas esquetes engraçadas! - Acima, programa semanal Zartenazo, um grupo humorístico que faz enorme sucesso na Bolívia, de 2015.)
(Uma novela divertida e bem canastrona, mostrando o dia-a-dia do povo boliviano, mas no idioma indígena local. Acima, cenas da novela Así és la Vida, de 2014.)
Um grupo de 12 juízes, teólogos de renome, ouviu a argumentação no convento dominicano de Valladolid, cidade que então era a capital da Espanha.
No fim, Las Casas viu-se forçado a apelar para a própria fé do grupo. Ele disse que, se Aristóteles tinha afirmado aquilo, então não passava de um pagão, e era preciso seguir o Evangelho.
(E como está esse povo indígena que Las Casas tanto quis defender? Para saber, assista ao documentário Don Quijote de la Selva, uma produção dos países Peru e Espanha, para os historiadores e estudantes do mundo, de 2013.)
As discussões arrastaram-se por um mês, e os juízes ficaram de dar seu veredito no ano seguinte - algo pelo qual se espera até hoje!
O desfecho do embate entre os dois religiosos mantém-se obscuro. Há quem diga que Las Casas foi aplaudido pelos juízes e tenha vencido a discussão.
Para alguns estudiosos, uma consequência sombria de todo o debate em torno da liberdade indígena foi o investimento cada vez maior dos colonizadores espanhóis nos escravos vindos da África.
(No Brasil as coisas também eram difíceis... Numa bela pesquisa, Jorge Amado conseguiu idealizar um romance único, consumido pelo mundo todo, pelos detalhes históricos de dominação e adaptação emocional entre os personagens, numa época pouco registrada na sociedade humana! - Acima, cenas da antológica novela Escrava Isaura, de 1976-1977, exibida pelo canal público Rede Globo.)
O crescimento da escravidão africana está ligado ao resultado desse debate. Aliás, a sugestão de usar os negros como trabalhadores foi de Las Casas.
No entanto, outros pesquisadores afirmam que o dominicano logo se arrependeu da tolerância à escravidão negra e passou a defender também a liberdade dos africanos, coisa que transparece em seus escritos mais tardios.
(Infelizmente, nossos hermanos de continente não são tão habilidosos com suas novelas... E, somente após a década de 1990, com o crescimento das televisões públicas Televisa (México) e Venevísion (Venezuela), é que as novelas latinas começaram a abordar de forma histórica e inteligente sua própria herança cultural. - Acima, cenas da novela mexicana Pobre Negro, de 2010.)
Ele chegou mesmo a rejeitar o direto da Espanha de colonizar a América e valorizou a cultura e a própria organização política dos índios.
Muitos continuaram duvidando da veracidade dos massacres e atrocidades que Las Casas condenava. Sua argumentação pode até ter sido aplaudida no convento em Valladolid - mas a história mostraria que, no dia-a-dia da colonização, as ideias que acabaram seguidas foram mesmo as de Sepúlveda...
Fim.:.
Referências Bibliográficas
Las Casas: Todos os Direitos para Todos, de Frei CArlos Josaphat, ed. Edições Loyola, de 2010.
A Controvérsia, de Jean-Claude Carrière, ed. Companhia das Letras, 2003.
O Paraíso Destruído, de Frei Bartolomé de Las Casas, ed. L&PM, de 1996.